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João Tavares, diretor executivo da RedeNEC, entrevista Thomas Krüger, presidente da maior agência de educação política do mundo.

Durante o Encontro Europeu de Educação Cívica, realizado em Tirana, capital da Albânia, a Rede Nacional de Educação Cidadã [RedeNEC] marcou presença com a participação do nosso diretor executivo, João Tavares, que entrevistou uma das maiores autoridades internacionais no tema: o alemão Thomas Krüger, presidente da Bundeszentrale für politische Bildung (bpb), a Agência Federal de Educação Política da Alemanha.

No comando da bpb desde 2000, Krüger é reconhecido por sua atuação decisiva na consolidação da educação política como política de Estado em seu país. Nascido na Alemanha Oriental e último prefeito de Berlim antes da Queda do Muro, ele liderou a agência por mais de duas décadas, enfrentando os desafios da radicalização, da desinformação e da apatia política com ações voltadas à promoção da participação cidadã e do pluralismo democrático.

A entrevista, concedida à RedeNEC às vésperas de sua aposentadoria, oferece uma visão privilegiada sobre os caminhos possíveis — e urgentes — para fortalecer a democracia por meio da formação política crítica, plural e acessível.

Leia a entrevista completa abaixo e conheça as reflexões de Thomas Krüger sobre os caminhos para fortalecer a cultura democrática por meio da educação política — e o recado direto que ele deixa ao Brasil neste momento decisivo:

João Tavares: O sociólogo Edgar Morin diz que vivemos em um mundo de policrises: crise econômica, social, ambiental, de confiança e política. Quando temos tantas questões importantes para abordar como sociedade, promover a conscientização e a participação política pode se tornar desafiador. Como você vê o papel da educação cívica neste contexto e, mais especificamente, como podemos encaixar todos esses temas importantes em um tempo limitado dentro do currículo escolar?

Thomas Krüger: Acredito que não devemos nos colocar em uma situação de sobrecarga na educação política. No entanto, as policrises precisam, é claro, ser analisadas como tais. E é fundamental considerar as interconexões envolvidas. O ponto decisivo para a educação política é o que chamamos de “referência ao sujeito”, o que, nessa situação específica, significa realizar análises de posicionamento de cada indivíduo em relação a essas policrises.

Somente quando você está confiante em si mesmo é que pode se capacitar para agir nesse contexto de policrises. Ou seja, a análise de posicionamento — identificar qual é o meu interesse subjetivo e como me posiciono — é o ponto de partida para a educação política como um todo. Porque é a partir daí que você consegue uma motivação intrínseca para lidar com essas questões e não se render a elas.

É claro que o sujeito não pode resolver as crises sozinho. Mas você precisa dessa perspectiva confiante para formar solidariedades e identificar com quem pode trazer melhor seus próprios interesses para a democracia. E, ao revisar esses mesmos interesses, você descobre que pode encontrar diferentes parceiros ou grupos com os quais se alinhar.

João Tavares: Neste momento, o Brasil está em processo de discussão sobre uma política nacional de educação cidadã.

A Rede Nacional de Educação Cidadã está desempenhando um papel central neste processo, tanto pressionando para que este tópico entre na agenda do governo ao longo dos últimos anos quanto ajudando a desenhar esta política em parceria com a sociedade civil, por meio da mediação da nossa Rede.

Neste momento crucial, que conselho você daria ao Brasil?

Thomas Krüger: É importante lembrar que a educação política não ocorre apenas no contexto escolar. Embora o contexto escolar seja um dos mais importantes, porque todas as crianças e jovens participam dele, o aspecto crucial da educação política é que ela também pode ser vivenciada em outros contextos e espaços sociais. Isso começa na família, continua na educação infantil, ocorre na escola, mas também em atividades de lazer juvenil, em clubes esportivos e até mesmo na formação militar. Ou seja, os espaços sociais que permeiam a sua vida são sempre também espaços de educação política.

A educação política, nesse sentido, é sempre interdisciplinar. Isso significa que ela conecta os processos educativos com outros processos de aprendizagem social, nos quais cada um desenvolve e segue a sua biografia. É somente dessa forma que se pode garantir que os princípios da educação política — como respeitar a opinião do outro e, ao mesmo tempo, apresentar uma posição forte nas discussões — sejam plenamente realizados.

Por vezes, no entanto, esses espaços sociais podem gerar desvantagens. Por exemplo, no ambiente escolar, se eu não obtenho bons resultados de aprendizagem, sou desfavorecido. Mas talvez eu seja um bom atleta e, nesse espaço social, consigo lidar com questões políticas e me realizar muito melhor. Nesse sentido, a vida como um todo é composta por diferentes espaços sociais, e a educação política ocorre em todos eles. O importante é apoiar cada pessoa de acordo com suas capacidades nesses espaços sociais.

João Tavares: Uma das principais preocupações ao abordar a educação cívica em sociedades polarizadas é garantir que ela permaneça apartidária. Como a bpb trabalha para garantir que a educação cívica na Alemanha seja apartidária e que as contradições na sociedade sejam apresentadas como contradições na sala de aula?

Thomas Krüger: Na Alemanha, após a Segunda Guerra Mundial, desenvolveu-se um cenário de educação política muito diverso. Existem iniciativas de educação política da sociedade civil em sindicatos, no contexto de igrejas, clubes esportivos e movimentos da sociedade civil. Esse campo amplo garante que as diferentes perspectivas sobre política e os processos de negociação entre posições polarizadas sejam considerados. É fundamental que essas diferentes origens sejam abordadas de maneira pacífica.

O segundo ponto é que o Estado fornece recursos para a educação política e também oferece seus próprios programas de educação política, mas deve seguir o princípio da imparcialidade. Vou detalhar isso em breve.

O terceiro ponto é que também as diversas organizações políticas realizam educação política em seus contextos. Na Alemanha, temos fundações fortes associadas a partidos políticos. Por exemplo, a Fundação Konrad Adenauer, ligada ao partido conservador, e a Fundação Friedrich Ebert, associada ao partido social-democrata. Isso significa que, no contexto dos partidos, também existem ofertas de educação política, refletindo assim a diversidade da sociedade nos programas de educação política.

Agora, qual é o papel do Estado nisso? Como o Estado é formado por governos que refletem maiorias contra minorias, ele nunca pode ignorar as posições das minorias na educação política. Isso é garantido na Alemanha por três princípios estabelecidos desde os anos 1970 e amplamente aceitos.

O primeiro deles é o Princípio da Controvérsia. Tudo o que é discutido de forma controversa na sociedade deve ser refletido como controverso nos programas estatais de educação política. Ou seja, se existem posições divergentes em relação a um conflito, a educação política deve apresentar todas elas, analisá-las e torná-las acessíveis, permitindo que o sujeito da educação política forme sua própria opinião.

Eu cresci na Alemanha Oriental (RDA), onde não se tratava de formar uma opinião própria, mas de aceitar a opinião imposta pelo Estado e pelo partido. Isso é exatamente o que a educação política não pode fazer. Essa é a diferença entre educação política em um contexto democrático e educação política como propaganda e agitação. A educação política democrática visa sempre permitir que as pessoas formem suas próprias opiniões.

O segundo é a proibição da asfixia: o Estado ou qualquer outro ator da educação política não pode determinar como as pessoas devem julgar ou decidir no final do processo. Sempre deve ser deixado ao sujeito, ao cidadão, a formação de sua própria opinião.

Por fim, é preciso se apoiar no contexto sociocultural. A educação cidadã deve ser organizada de forma que apoie e se conecte ao contexto social, cultural e prático de vida da pessoa.

Por exemplo, uma pessoa que está na universidade e lê livros densos tem um formato de aprendizado, enquanto outra pessoa, que talvez não leia ou seja analfabeta, pode preferir assistir a vídeos nas redes sociais. É essencial oferecer formatos que permitam a todos na sociedade acessar a educação política.

A educação política é um bem comum, não um privilégio destinado apenas aos mais instruídos.

João Tavares: Nossa quarta pergunta é sobre os limites da educação cívica para conter o avanço autoritário ao redor do mundo. A Alemanha recentemente passou por uma eleição apertada, com vozes mais radicais ganhando terreno, especialmente em áreas onde o trabalho do bpb só começou após a queda do Muro de Berlim.

Você vê uma conexão entre esses dois pontos? E, não sendo os bombeiros da democracia, qual é o verdadeiro papel dos educadores cívicos na manutenção de um regime democrático?

Thomas Krüger: A educação política não pode substituir a política. No entanto, ela pode apoiar as pessoas a formar suas próprias opiniões, construir solidariedades e, muito importante, participar dos processos de decisão política. Essa dimensão de participação é uma questão fundamental na democracia. Democracia não significa apenas implementar o princípio da maioria entre diferentes grupos de interesse, como partidos, mas também proteger as minorias e garantir que todos tenham a oportunidade de participar desses processos decisórios.

Na prática, isso é mais difícil do que parece. Muitas vezes, a educação política é cobrada, mas quando algo dá errado, a questão não é o que a política fez de errado, e sim o que a educação política não conseguiu fazer. Isso é injusto, porque a educação política tem limitações. Ela pode motivar e criar condições para que as pessoas se envolvam nos processos de decisão política, mas não pode substituir a política em si. Esse é um ponto importante.

O segundo ponto é: qual a relação disso com os resultados eleitorais? É desafiador organizar a educação política em um país pós-ditatorial, como foi o caso da antiga Alemanha Oriental (DDR). Contudo, os resultados eleitorais no Leste da Alemanha devem ser comparados com outros países europeus. A porcentagem de votos para partidos populistas de direita não é tão diferente do Oeste da Alemanha, mas é similar ao que ocorre no Leste. Um terço do eleitorado vota em partidos populistas de direita. Na Holanda, Áustria, França, Polônia e outros países, observamos exatamente o mesmo resultado que no Leste da Alemanha. Por isso, dizer que o Leste da Alemanha é um caso especialmente problemático não é completamente correto

A questão é: pode-se, através da educação política, criar uma situação que capacite as pessoas a formar um julgamento equilibrado e, a partir disso, tirar conclusões para seu próprio engajamento? Nesse aspecto, já observamos no Leste da Alemanha uma sociedade civil muito ativa, que luta pela proteção de minorias e contra o racismo e o antissemitismo. Muito progresso foi feito, mas é uma luta combativa e controversa dentro da sociedade. E essa luta precisa ser aceita, não abandonada.

Meu lema é: levantar a cabeça, não as mãos.

João Tavares: Para concluir, você poderia deixar uma mensagem aos brasileiros sobre a importância da educação cidadã?

Thomas Krüger: Acredito que é muito importante tentar considerar as diferentes perspectivas dessa sociedade incrivelmente pluralista que é o Brasil. Isso significa dar voz e espaço às diversas posições. O ativismo que já pode ser observado no Brasil é, nesse sentido, uma boa fonte de recursos. No entanto, é fundamental que também as vozes que não são tão altas, que não se atrevem a se posicionar publicamente de forma mais assertiva, tenham audiência, sejam ouvidas e se tornem parte dos processos de educação política.

O segundo conselho que eu daria é permanecer independente, evitando apoios inadequados no contexto de possíveis rivalidades. Isso significa reconhecer quando o governo promove a educação política, afirmando que é algo positivo, mas sem que isso exija um posicionamento de alinhamento exclusivo ao governo, o que levaria a combater o lado oposto. A educação política precisa dar um passo atrás e garantir espaço para ambos os lados. Democracia é quando você pode ter uma opinião diferente sem ser punido por isso. Essa seria uma perspectiva essencial.

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